Papai Noel não existe

Não me lembro quando, mas descobri cedo a inexistência do Papai Noel. Linguarudo, meu pai deve ter deixado escapulir que não tinha mais estômago para fazer sauna naquela roupa alugada. Imagino o alívio de mamãe em não precisar mais esconder as compras da Rozenlândia na última porta do armário.
Para começar, o que ele estaria fazendo de roupa de veludo e gorro no céu de quarenta graus do Rio? Nunca levei fé que Papai Noel viesse de trenó voador de casa em casa. E a quantidade de lares que teria de visitar na madrugada? Nem de Concorde. Papai Noel não conseguiria presentear todas as crianças da terra puxado por meia dúzia de renas: teria que ser seletivo. Começaria pelos famintos, depois os miseráveis, depois os muito pobrezinhos, depois os pobrezinhos e depois os muito pobres. Talvez nem desse tempo – são mais de sete bilhões de habitantes no mundo – de passar na casa de todos eles (e os sem casa?).
Na véspera, deitada na cama, olhava minhas prateleiras cheias de brinquedos. Não faltava nada, sobravam sonhos que eu deveria dar de presente. Eu poderia ser sua assistente, no máximo. Não esperava por sua chegada: eu, a última preocupação do Bom Velhinho. Não seria justo, eu já tinha bonecas demais. Viu? Ele não viria. Ele não existia: senão não haveria os famintos, os miseráveis, os muito pobrezinhos, os pobrezinhos nem os muito pobres.
Penso em Natal e aqueles presentes não fazem falta. Aperto a lembrança e sinto paz nos olhos azuis da minha avó estrangeira. Tenho saudade das palhaçadas do meu tio e da risada do cunhado. Friorenta, quero me esquentar no abraço de papai contra o ar-condicionado gelado da ceia. E passar o dia correndo pelos cantos com meu irmão. Eis que surge minha mãe em dois metros, de cabelos esvoaçantes e voz doce. Devia adorar Barbies porque pareciam com ela.
Papai Noel, hoje te faço dois desejos: cuide bem do Natal dos outros. E se não for pedir muito, me faça criança outra vez.
Boljul8

Um pensamento sobre “Papai Noel não existe

  1. Luiza, sua sensibilidade para as coisas realmente é muito bonita! Reflexões sei la se intencionais, mas que sei, são espontaneamente inevitáveis.

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